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A morte


A morte é uma simples mudança de estado, a destruição de uma forma frágil que já não proporciona à vida as condições necessárias ao seu funcionamento e à sua evolução. Para além da campa, abre-se uma nova fase de existência. O Espírito, debaixo da sua forma fluídica, imponderável, prepara-se para novas reencarnações; acha no seu estado mental os frutos da existência que findou.


Por toda parte se encontra a vida. A Natureza inteira mostra-nos, no seu maravilhoso panorama, a renovação perpétua de todas as coisas. Em parte alguma há a morte, como, em geral, é considerada entre nós; em parte alguma há o aniquilamento; nenhum ente pode perecer no seu princípio de vida, na sua unidade consciente. O universo transborda de vida física e psíquica. Por toda parte o imenso formigar dos seres, a elaboração de almas que, quando escapam às demoradas e obscuras preparações da matéria, é para prosseguirem, nas etapas da luz, a sua ascensão magnífica.


A vida do homem é como o Sol das regiões polares durante o estio. Desce devagar, baixa, vai enfraquecendo, parece desaparecer um instante por baixo do horizonte. É o fim, na aparência; mas, logo depois, torna a elevar-se, para novamente descrever a sua órbita imensa no céu.


A morte é apenas um eclipse momentâneo na grande revolução das nossas existências; mas, basta esse instante para revelar-nos o sentido grave e profundo da vida. A própria morte pode ter também a sua nobreza, a sua grandeza. Não devemos temê-la, mas, antes, esforçarmo-nos por embelezá-la, preparando-se cada um constantemente para ela, pela pesquisa e conquista da beleza moral, a beleza do Espírito que molda o corpo e o orna com um reflexo augusto na hora das separações supremas. A maneira pela qual cada um sabe morrer é já, por si mesma, uma indicação do que para cada um de nós será a vida do espaço.


Há como uma luz fria e pura em redor da almofada de certos leitos de morte. Rostos, até aí insignificantes, parecem aureolados por claridades do Além. Um silêncio imponente faz-se em volta daqueles que deixaram a Terra. Os vivos, testemunhas da morte, sentem grandes e austeros pensamentos desprenderem-se do fundo banal das suas impressões habituais, dando alguma beleza à sua vida interior. O ódio e as más paixões não resistem a esse espetáculo. Ante o corpo de um inimigo, abranda toda a animosidade, esvai-se todo o desejo de vingança. Junto de um esquife, o perdão parece mais fácil, mais imperioso o dever.


Toda morte é um parto, um renascimento; é a manifestação de uma vida até aí latente em nós, vida invisível da Terra, que vai reunir-se à vida invisível do espaço. Depois de certo tempo de perturbação, tornamos a encontrar-nos, além do túmulo, na plenitude das nossas faculdades e da nossa consciência, junto dos seres amados que compartilharam as horas tristes ou alegres da nossa existência terrestre. A tumba apenas encerra pó. Elevemos mais alto os nossos pensamentos e as nossas recordações, se quisermos achar de novo o rastro das almas que nos foram caras.


Não peçais às pedras do sepulcro o segredo da vida. Os ossos e as cinzas que lá jazem nada são, ficai sabendo. As almas que os animaram deixaram esses lugares, revivem em formas mais sutis, mais apuradas. Do seio do invisível, aonde lhes chegam as vossas orações e as comovem, elas vos seguem com a vista, vos respondem e vos sorriem. A revelação espírita ensinar-vos-á a comunicar com elas, a unir os vossos sentimentos num mesmo amor, numa esperança inefável.


Muitas vezes, os seres que chorais e que ides procurar no cemitério estão ao vosso lado. Vêm velar por vós aqueles que foram o amparo da vossa juventude, que vos embalaram nos braços, os amigos, companheiros das vossas alegrias e das vossas dores, bem como todas as formas, todos os meigos fantasmas dos seres que encontrastes no vosso caminho, os quais participaram da vossa existência e levaram consigo alguma coisa de vós mesmos, da vossa alma e do vosso coração. Ao redor de vós flutua a multidão dos homens que se sumiram na morte, multidão confusa, que revive, vos chama e mostra o caminho que tendes de percorrer.


Ó morte, ó serena majestade! Tu, de quem fazem um espantalho, és para o pensador simplesmente um momento de descanso, a transição entre dois atos do destino, dos quais um acaba e o outro se prepara. Quando a minha pobre alma, errante há tantos séculos através dos mundos, depois de muitas lutas, vicissitudes e decepções, depois de muitas ilusões desfeitas e esperanças adiadas, for repousar de novo no teu seio, será com alegria que saudará a aurora da vida fluídica; será com ebriedade que se elevará do pó terrestre, através dos espaços insondáveis, em direção àqueles a quem amou neste mundo e que a esperam.


Para a maior parte dos homens a morte continua a ser o grande mistério, o sombrio problema que ninguém ousa olhar de frente. Para nós ela é a hora bendita em que o corpo cansado volve à grande Natureza para deixar à Psique, sua prisioneira, livre passagem para a pátria eterna. Essa pátria é a Imensidade radiosa, cheia de sóis e de esferas. Junto deles, como há de parecer raquítica a nossa pobre Terra! O infinito envolve-a por todos os lados. O infinito na extensão e o infinito na duração, eis o que se nos depara, quer se trate da alma, quer se trate do universo.


Assim como cada uma das nossas existências tem o seu termo e há de desaparecer para dar lugar a outra vida, assim também cada um dos mundos semeados no espaço terá de morrer para dar lugar a outros mundos mais perfeitos.


Dia virá em que a vida humana se extinguirá no Globo esfriado. A Terra, vasta necrópole, rolará, soturna, na amplidão silenciosa. Hão de elevar-se ruínas imponentes nos lugares onde existiram Roma, Paris, Constantinopla, cadáveres de capitais, últimos vestígios das raças extintas, livros gigantescos de pedra que nenhum olhar carnal voltará a ler. Mas a humanidade terá desaparecido da Terra somente para prosseguir, em esferas mais bem dotadas, a carreira de sua ascensão. A vaga do progresso terá impelido todas as almas terrestres para planetas mais bem preparados para a vida. É provável que civilizações prodigiosas floresçam há esse tempo em Saturno e Júpiter; ali se hão de expandir humanidades renascidas numa glória incomparável. Lá é o lugar futuro dos seres humanos, o seu novo campo de ação, os sítios abençoados onde lhes será dado continuarem a amar e trabalhar para o seu aperfeiçoamento.


No meio de seus trabalhos, a triste lembrança da Terra virá talvez perseguir ainda esses Espíritos; mas, das alturas atingidas, a memória das dores sofridas, das provas suportadas, será apenas um estimulante para se elevarem a maiores alturas.


Em vão a evocação do passado lhes fará surgir à vista os espectros de carne, os tristes despojos que jazem nas sepulturas terrestres. A voz da sabedoria dir-lhes-á:


“Que importa as sombras que se foram! Nada perece. Todo ser se transforma e esclarece sobre os degraus que conduzem de esfera em esfera, de sol em sol, até Deus. Espírito imorredouro, lembra-te disto: “A morte não existe!”


*


O ensino e o cerimonial das igrejas muito têm contribuído, ao representar a morte com formas lúgubres, para fazer nascer um sentimento de terror nos espíritos. As doutrinas materialistas, por sua vez, não eram próprias para reagir contra essa impressão.


À hora do crepúsculo, quando a noite desce sobre a Terra, apodera-se de nós uma espécie de tristeza. Facilmente a afugentamos, dizendo no nosso íntimo: depois das trevas virá a luz. A noite é apenas a véspera da aurora!


Quando acaba o verão e o inverno taciturno sucede ao deslumbramento da Natureza, consolamo-nos com o pensamento das florescências futuras. Por que existe, pois, o medo da morte, a ansiedade pungente, com relação a um ato que não é o fim de coisa alguma? É quase sempre porque a morte nos parece a perda, a privação súbita de tudo o que fazia a nossa alegria. O espiritualista sabe que não é assim. A morte é para ele a entrada num modo de vida mais rico de impressões e de sensações. Não somente não ficamos privados das riquezas espirituais, como também estas aumentam com recursos tanto mais extensos e variados quanto a alma se tiver preparado melhor para gozá-los.


A morte nem sequer nos priva das coisas deste mundo. Continuaremos a ver aqueles a quem amamos e deixamos atrás de nós. Do seio dos Espaços seguiremos os progressos deste planeta; veremos as mudanças que ocorrerem na sua superfície; assistiremos às novas descobertas, ao desenvolvimento social, político e religioso das nações e, até à hora do nosso regresso à carne, em tudo isso havemos de cooperar fluidicamente, auxiliando, influenciando, na medida do nosso poder e do nosso adiantamento, aqueles que trabalham em proveito de todos.


Bem longe de afugentar a idéia da morte, como em geral o fazemos, saibamos, pois, encará-la face a face, pelo que ela é na realidade. Esforcemo-nos por desembaraçá-la das sombras e das quimeras com que a envolvem e averigüemos como convém nos prepararmos para esse incidente natural e necessário no curso da vida.


Necessário, dizemos. Com efeito, o que aconteceria se a morte fosse suprimida? O globo tornar-se-ia estreito demais para conter a multidão humana. Com a idade e a velhice, a vida parecer-nos-ia, em dado momento, de tal modo insuportável, que preferiríamos tudo à sua prolongação indefinida. Viria um dia em que, tendo esgotado todos os meios de estudo, de trabalho, de cooperação útil à ação comum, a existência revestiria para nós um caráter de insuportável monotonia.


O nosso progresso e a nossa elevação exigem-no: mais dia menos dia, temos de ficar livres do invólucro carnal, que, depois de haver prestado os serviços esperados, se torna impróprio para seguir-nos em outros planos do nosso destino. Como é possível que aqueles que crêem na existência de uma sabedoria previdente, de um Poder ordenador, qualquer que seja, aliás, a forma que emprestem a esse Poder, considerem a morte um mal? Se ela representa um papel importante na evolução dos seres, não será, portanto, uma das fases reclamadas por essa evolução, o correspondente natural do nascimento, um dos elementos essenciais do plano da vida?


O universo não pode falhar. Seu fim é a beleza; seus meios a justiça e o amor. Fortaleçamo-nos com o pensamento no futuro sem limites. A confiança na outra vida estimulará os nossos esforços, torná-los-á mais fecundos. Nenhuma obra de vulto e que exija paciência pode ser levada a cabo sem a certeza do dia seguinte. A cada vez que distribui os seus golpes à nossa volta, a morte, no seu esplendor austero, torna-se um ensinamento, uma lição soberana, um incentivo para trabalharmos melhor, para procedermos melhor, para aumentarmos constantemente o valor da nossa alma.


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Os sepultamentos são feitos com um aparato que deixa outra impressão não menos penosa na memória dos assistentes. O pensamento de que o nosso invólucro será também por sua vez depositado na terra provoca uma sensação de angústia e asfixia. No entanto, todos os corpos que por nós foram animados, no passado, jazem igualmente no solo ou vão sendo paulatinamente transformados em plantas e flores. Esses corpos eram simples vestuários usados; a nossa personalidade não foi enterrada com eles; pouco nos importa hoje o que deles foi feito. Por que havemos, então, de nos preocupar mais com a sorte do último do que com a dos outros? Sócrates respondia com justeza aos seus amigos que lhe perguntavam como queria ser enterrado: “Enterrai-me como quiserdes, se puderdes apoderar-vos de mim.” (113)


Inúmeras vezes a imaginação do homem povoa as regiões do Além de criações assustadoras, que se tornam horripilantes para ele. Certas igrejas ensinam, ainda, que as condições boas ou más da vida futura são definitivas, irrevogavelmente determinadas por ocasião da morte e essa afirmação perturba a existência de muitos crentes. Outros temem o insulamento, o abandono no seio dos Espaços.


A Revelação dos Espíritos vem pôr termo a todas essas apreensões; traz-nos sobre a vida de além-túmulo indicações exatas;(114) dissipa a incerteza cruel e o temor do desconhecido que nos atribulam. A morte, diz-nos ela, em nada muda a nossa natureza espiritual, os nossos caracteres, o que constitui o nosso verdadeiro “eu”; apenas nos torna mais livres, dota-nos de uma liberdade cuja extensão se mede pelo nosso grau de adiantamento. Tanto de um lado quanto de outro, temos a possibilidade de fazer o bem ou o mal, a facilidade de adiantar-nos, de progredir, de reformar-nos. Por toda a parte reinam as mesmas leis, as mesmas harmonias, as mesmas potências divinas. Nada é irrevogável. O amor que nos chama a este mundo, atrai-nos mais tarde para o outro; mas em todos os lugares amigos protetores, arrimos, esperam-nos. Ao passo que neste mundo choramos a partida de um dos nossos, como se ele fosse perder-se no nada, acima de nós seres etéreos glorificam a sua chegada à luz, da mesma forma que nós nos regozijamos com a chegada de uma criancinha, cuja alma vem, de novo, desabrochar para a vida terrestre. Os mortos são os vivos do céu!


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Muitas pessoas temem a morte por causa dos sofrimentos físicos que a acompanham. Sofremos, é verdade, na doença que acaba pela morte, mas sofremos também nas doenças de que nos curamos. No instante da morte, dizem-nos os Espíritos, quase nunca há dor; morre-se como se adormece. Essa opinião é confirmada por todos aqueles a quem a profissão e o dever chamam freqüentes vezes para a cabeceira dos moribundos.


No entanto, se considerarmos o sossego, a serenidade de certos doentes nas horas derradeiras e a agitação convulsiva, a agonia de outros, devemos reconhecer que as sensações que precedem a morte são muito diversas, em relação aos indivíduos. Os sofrimentos são tanto mais vivos quanto mais numerosos e fortes são os laços que unem a alma ao corpo. Tudo o que os pode diminuir, enfraquecer, tornará a separação mais rápida, a transição menos dolorosa.


Se a morte é quase sempre isenta de sofrimento para aquele cuja vida foi nobre e bela, não sucede o mesmo com os sensuais, os violentos, os criminosos, os suicidas.


Uma vez transposta a passagem, uma espécie de perturbação, de entorpecimento, invade a maior parte das almas que não souberam preparar-se para a partida. Nesse estado, as suas faculdades ficam veladas, as suas percepções mal se exercem através de um nevoeiro mais ou menos denso. A duração da perturbação varia segundo a natureza e o valor moral delas; pode ser muito prolongada para as mais atrasadas e chegar a anos até; depois, pouco a pouco, vai-se dissipando o nevoeiro; as percepções ganham maior nitidez. O Espírito readquire a lucidez; desperta para a nova vida, a vida do espaço. Solene é esse instante para ele, mais decisivo, mais formidável do que a hora da morte; porque, segundo o seu valor e o seu grau de pureza, será tranqüilo e delicioso, cheio de ansiedade ou de sofrimento esse despertar.


No estado de perturbação, a alma tem consciência dos pensamentos que se lhe dirigem. Os pensamentos de amor e caridade, as vibrações dos corações afetuosos brilham para ela como raios na névoa que a envolve; ajudam-na a soltar-se dos últimos laços que a acorrentam à Terra, a sair da sombra em que está imersa. É por isso que as preces inspiradas pelo coração, pronunciadas com calor e convicção, principalmente as preces improvisadas, são salutares, benfazejas para o Espírito que deixou a vida corporal; pelo contrário, as orações vagas, pueris, das igrejas, são muitas vezes ineficazes. Pronunciadas maquinalmente, não adquirem o poder vibratório que faz do pensamento uma força penetrante e, ao mesmo tempo, uma luz.


O cerimonial religioso em uso oferece, em geral, pouco auxílio e conforto aos defuntos. Os assistentes dessas manifestações, na ignorância das condições da sobrevivência, ficam indiferentes e distraídos. É quase um escândalo ver a desatenção com que se assiste, em nossa época, a uma cerimônia fúnebre. A atitude dos assistentes, a falta de recolhimento, as conversas banais trocadas durante o funeral, tudo causa penosa impressão. Bem poucos dos que formam o acompanhamento pensam no defunto e consideram como dever projetar para ele um pensamento afetuoso.


As preces fervorosas dos amigos, dos parentes, são muito mais eficazes para o Espírito do morto do que as manifestações do culto mais pomposo; não é, contudo, conveniente nos entregarmos desmedidamente à dor da separação. As saudades da partida são, decerto, legítimas e as lágrimas sinceras são sagradas; mas, quando demasiado violentas, essas manifestações de pesar entristecem e desanimam aquele a quem se dirigem e, muitas vezes, testemunha delas. Em vez de lhe facilitarem o vôo para o espaço, retêm-no nos lugares onde sofreu e onde ainda estão sofrendo aqueles que lhe são caros.


Pergunta-se às vezes o que se deve pensar das mortes prematuras, das mortes acidentais, das catástrofes que, de um golpe, destroem numerosas existências humanas. Como conciliar esses fatos com a idéia de plano, de providência, de harmonia universal? E se deixa voluntariamente a vida por um ato de desespero, que sucede? Qual é a sorte dos suicidas?


As existências interrompidas prematuramente por causa de acidentes chegaram ao seu termo previsto. São, em geral, complementares de existências anteriores, truncadas por causa de abusos ou excessos. Quando, em conseqüência de hábitos desregrados, se gastaram os recursos vitais antes da hora marcada pela Natureza, tem-se de voltar a perfazer, numa existência mais curta, o lapso de tempo que a existência precedente devia ter normalmente preenchido. Sucede que os seres humanos passíveis dessa reparação se reúnem num ponto pela força do destino, para sofrerem, numa morte trágica, as conseqüências de atos que têm relação com o passado anterior ao nascimento. Daí, as mortes coletivas, as catástrofes que lançam no mundo um aviso. Aqueles que assim partem, acabaram o tempo que tinham de viver e vão preparar-se para existências melhores.


Quanto aos suicidas, a perturbação em que a morte os imerge é profunda, penosa, dolorosa. A angústia os agrilhoa e segue até à sua reencarnação ulterior. O seu gesto criminoso causa ao corpo fluídico um abalo violento e prolongado que se transmitirá ao organismo carnal pelo renascimento. A maior parte deles volta enferma à Terra. Estando no suicida, em toda a sua força, a vida, o ato brutal que a despedaça produzirá longas repercussões no seu estado vibratório e determinará afecções nervosas nas suas futuras vidas terrestres.


O suicida procura o nada e o esquecimento de todas as coisas; mas vai, ao contrário, encontrar-se em face de sua consciência, na qual fica gravada, para todo o sempre, a recordação lamentável da sua deserção do combate da vida. A prova mais dura, o sofrimento mais cruel que haja na Terra é preferível à recriminação perpétua da alma, à vergonha de já não se poder prezar.


A destruição violenta de recursos físicos que podiam ser-lhe úteis ainda, e até fecundos, não livra o suicida das provações a que quis fugir, porque lhe será necessário reatar a cadeia quebrada das suas existências e com ela tornar a achar a série inevitável das provas, agravadas por atos e conseqüências que ele mesmo causou.


Os motivos de suicídio são de ordem passageira e humana; as razões de viver são de ordem eterna e sobre-humana. A vida, resultado de um passado completo, instrumento de futuro, é, para cada um de nós, o que deve ser na balança infalível do destino. Aceitemos com coragem suas vicissitudes, que são outros tantos remédios para as nossas imperfeições, e saibamos esperar com paciência a hora fixada pela lei eqüitativa para termo da nossa permanência na Terra.


*


O conhecimento que nos tiver sido possível adquirir das condições da vida futura exerce grande influência em nossos últimos momentos; dá-nos mais segurança; abrevia a separação da alma. Para nos prepararmos com proveito para a vida do Além, é preciso não somente estarmos convencidos da sua realidade, mas também lhe compreender as leis, ver com o pensamento as vantagens e as conseqüências dos nossos esforços para o ideal moral. Os nossos estudos psíquicos, as relações estabelecidas durante a vida com o mundo invisível, as nossas aspirações às formas de existência mais elevadas, desenvolvem as nossas faculdades latentes e, quando chega a hora definitiva, como se encontra já em parte efetuada a separação do corpo, a perturbação pouco dura. O Espírito reconhece-se quase logo: tudo o que vê lhe é familiar; adapta-se sem esforço e sem emoção às condições no novo meio.


Quando se aproxima a hora derradeira, os moribundos entram muitas vezes na posse dos seus sentidos psíquicos e percebem os seres e as coisas do Invisível. Numerosos são os exemplos. Apresentamos alguns, extraídos das investigações feitas pelo Sr. Ernesto Bozzano, cujos resultados foram publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, de março de 1906:


1° caso – Num livro que conta a vida do Rev. Dwight L. Moody (fervoroso propagandista evangélico nos Estados Unidos), escrita por seu filho (pág. 485), encontra-se a seguinte narrativa dos seus últimos momentos:


“Ouviram-no, de repente, murmurar: “A Terra afasta-se, o céu abre-se diante de mim; passei os seus últimos limites. Não me chameis outra vez; tudo isto é belo; dir-se-ia uma visão de êxtase. Se isto é a morte, como é suave...” Seu rosto reanimou-se e, com uma expressão de alegre enlevo: “Dwight! Irene! Vejo as crianças!” (fazia alusão a dois dos seus netos que tinham morrido). Depois, voltando-se para sua mulher, disse-lhe: “Tu foste sempre uma boa companheira para mim.” Depois dessas palavras, perdeu os sentidos.”


2º caso – O Sr. Alfred Smedley, a págs. 50 e 51 da sua obra Some Reminiscences, conta do seguinte modo os últimos momentos de sua mulher:


“Alguns momentos antes da sua morte, os olhos se lhe fixaram em alguma coisa que pareceu enchê-los de viva e agradável surpresa. Então disse:


– Como! Estão aqui minha irmã Carlota, minha mãe, meu pai, meu irmão João, minha irmã Maria! Agora, trazem-me também Bessy Heap! Estão todos aqui. Oh! como isto é belo, como isto é belo! Não os estás vendo?


– Não, minha querida – respondi – e muito sinto.


– Então, não os podes ver – repetiu a doente com surpresa –. Não obstante, todos estão aqui, vieram para me levar com eles. Uma parte da nossa família já atravessou o grande mar e não tardaremos a achar-nos todos reunidos na nova mansão celeste.


Acrescentarei aqui que Bessy Heap tinha sido uma criada muito fiel, muito afeiçoada à nossa família, e que sempre tivera por minha mulher particular estima.


Depois dessa visão extática, a doente ficou algum tempo como exausta; finalmente, voltando fixamente a vista para o céu e erguendo os braços, expirou.”


3º caso – O Dr. Paul Edwards escrevia, em abril de 1903, ao diretor de Light, de Londres:


“Aí por volta do ano de 1887, quando eu habitava uma cidade da Califórnia, fui chamado para junto da cabeceira de uma amiga a quem dedicava grande estima e que se achava na hora extrema, em conseqüência de uma doença do peito. Toda gente sabia que essa mulher pura e nobre, mãe exemplar, estava votada a morte iminente. Ela acabou também por assim o compreender e quis então preparar-se para o grande momento. Tendo mandado vir os filhos para junto do leito, beijava ora um, ora outro, mandando-os depois retirar. O marido aproximou-se por último para dar-lhe e receber o adeus supremo. Achou-a na plena posse das suas faculdades intelectuais. Ela começou por dizer:


– Newton (era o nome do marido), não chores, porque eu não sofro e tenho a alma pronta e serena. Amei-te na Terra; continuarei a amar-te depois de partir. É meu intento vir até ti, se me for possível; se não puder, velarei do céu por ti, por meus filhos, esperando a tua vinda. Agora, o meu mais vivo desejo é ir-me embora... Avisto algumas sombras que se agitam em volta de nós... todas vestidas de branco... Ouço uma melodia deliciosa... Oh! aí está a minha Sadie! Está perto de mim e sabe perfeitamente quem eu sou. (Sadie era uma filhinha que ela perdera havia dez anos.)


– Sissy – disse-lhe o marido – minha Sissy, não vês que estás sonhando?!


– Ah! meu caro – respondeu a doente –, por que me chamaste? Agora, custar-me-á mais a ir-me embora. Sentia-me tão feliz no Além, era tão delicioso, tão belo!


Três minutos depois, aproximadamente, acrescentou a agonizante:


– Vou-me novamente embora e, desta vez, não voltarei, ainda que me chames.


Durou esta cena oito minutos. Via-se bem que a agonizante gozava da visão completa dos dois mundos ao mesmo tempo, porque falava das figuras que se moviam ao seu derredor no Além e, simultaneamente, dirigia a palavra aos mortais deste mundo... Nunca me sucedeu assistir a morte mais impressionante, mais solene.”


Os “Annales” relatam igualmente grande número de casos em que o doente percebe aparições de defuntos, cujo falecimento ignorava. Cinco casos sensacionais encontram-se nos Proceedings of the S. P. R., de Londres. Esses casos apóiam-se em testemunhos de alto valor.


O Sr. Ernesto Bozzano, ao terminar a sua exposição, pergunta se esses fenômenos poderiam ser explicados pela subconsciência ou pela leitura do pensamento. Conclui pela negativa e assim se exprime: (115)


“Essas hipóteses pouco se recomendam pela simplicidade e não têm o dom de convencer facilmente um investigador imparcial. É claro que, com semelhantes teorias, tão embrulhadas e muito mais engenhosas do que sérias, se ultrapassam as fronteiras da indução científica para mergulhar-se no domínio ilimitado do fantástico.” (116)


Enfim, eis dois outros fatos publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, de maio de 1911. Eles apresentam certos traços de analogia com os precedentes e, além disso, se enriquecem de pormenores que nos ensinam como se opera, na morte, a separação entre o corpo fluídico e o corpo material.


A Sra. Morence Marryat escreve o que se segue no The Spirit’s World (O Mundo dos Espíritos, 128):

“Conto entre meus mais caros amigos uma jovem, pertencente às altas classes da aristocracia, dotada de maravilhosas faculdades mediúnicas.


Teve ela, há alguns anos, a infelicidade de perder sua irmã mais velha, então com vinte anos, em conseqüência de uma forte pleurisia.


Edith (designarei por esse nome a jovem médium) não quis afastar-se um só instante da cabeceira de sua irmã e aí, em estado de clarividência, pôde assistir ao processo de separação do Espírito da parte material. Contava-me ela que a pobre doente, em seus últimos dias de vida terrestre, se tinha tornado inquieta, sobreexcitada, delirante, voltando-se incessantemente no leito e pronunciando palavras sem sentido.


Foi então que Edith começou a perceber uma espécie de ligeira nebulosidade semelhante a fumaça, que, condensando-se gradualmente acima da cabeça, acabou por assumir as proporções, as formas e os traços da irmã moribunda, de modo a se lhe assemelhar por completo. Essa forma flutuava no ar, a pouca distância da doente.


À medida que o dia declinava, a agitação da enferma minorava, sendo substituída à tarde por prostração profunda, precursora da agonia.


Edith contemplava avidamente a irmã: o rosto tornara-se lívido, o olhar obscurecia-se, mas, ao alto, a forma fluídica purpureava-se e parecia animar-se gradualmente com a vida que abandonava o corpo.


Um momento depois, a criança jazia inerte e sem conhecimento sobre os travesseiros, mas a forma se transformara em Espírito vivo. Cordões de luz, no entanto, semelhantes a florescências elétricas, ligavam-se ainda ao coração, ao cérebro e aos outros órgãos vitais.


Chegando o momento supremo, o Espírito oscilou algum tempo de um lado a outro, para vir em seguida colocar-se ao lado do corpo inanimado. Ele era, em aparência, muito fraco e mal podia suster-se.


E, enquanto Edith contemplava esta cena, eis que se apresentaram duas formas luminosas, nas quais reconheceu seu pai e sua avó, mortos ambos nessa mesma casa. Aproximaram-se do Espírito recém-nascido, sustentaram-no afetuosamente e o abraçaram. Depois, arrancaram-lhe os cordões de luz que o ligavam ainda ao corpo e, apertando-o sempre nos braços, dirigiram-se à janela e desapareceram.”


W. Stainton Moses, pastor da Igreja Anglicana e um dos mais célebres médiuns de nossa época, publicou em Light:

“Tive recentemente e pela primeira vez na vida ocasião de estudar os processos de transição do Espírito. Aprendi tantas coisas dessa experiência, que me louvo por ser útil a outros contando o que vi... Tratava-se de um próximo parente meu, de quase 80 anos. Eu tinha percebido, por certos sintomas, que seu fim estava próximo e corri a preencher meu triste e último dever...


Graças a meus sentidos espirituais, podia verificar que em torno e acima de seu corpo se formava a aura nebulosa com a qual o Espírito devia preparar seu corpo espiritual; e percebia que ela ia aumentando de volume e densidade, posto que submetida a maiores ou menores variações, segundo as oscilações experimentadas na vitalidade do moribundo.


Pude assim notar que, por vezes, um alimento leve tomado pelo doente ou uma influência magnética desprendida por pessoa que dele se aproximasse tinha como resultado avivar momentaneamente o corpo. A aura parecia, pois, continuamente em fluxo e refluxo.


Assisti a esse espetáculo durante doze dias e doze noites e, embora ao sétimo dia já o corpo tivesse dado sinais de sua iminente dissolução, a flutuação da vitalidade espiritual em via de exteriorização persistia. Pelo contrário, a cor da aura tinha mudado; esta última tomava, além disso, formas cada vez mais definidas, à medida que a hora da libertação se aproximava para o Espírito.


Vinte e quatro horas, somente, antes da morte, quando o corpo jazia inerte, foi que o processo de libertação progrediu. No momento supremo vi aparecer formas de “espíritos guardiães”, que se chegaram ao moribundo e sem nenhum esforço separaram o Espírito do corpo consumido. Quando, enfim, se quebraram os cordões magnéticos, os traços do defunto, nos quais se liam os sofrimentos experimentados, serenaram completamente e se impregnaram de inefável expressão de paz e de repouso.”


Em resumo, o melhor meio de conseguirmos uma morte suave e tranqüila é viver dignamente, com simplicidade e sobriedade, é viver uma vida sem vícios nem fraquezas, desapegando-nos antecipadamente de tudo o que nos liga à matéria, idealizando a nossa existência, povoando-a de pensamentos elevados e ações nobres.


Sucede o mesmo com as condições boas ou ruins da vida de além-túmulo. Dependem também unicamente da maneira pela qual desenvolvemos as nossas tendências, os nossos apetites, os nossos desejos. É na atualidade que precisamos preparar-nos, agir, reformar-nos, e não no momento em que se aproxima o fim terrestre. Seria pueril acreditarmos que a nossa situação futura depende de certas formalidades mais ou menos bem cumpridas à hora da partida. É a nossa vida inteira que responde pela vida futura; uma e outra se ligam estreitamente; formam uma série de causas e efeitos que a morte não interrompe.


Não é menos importante dissipar as quimeras que preocupam certos cérebros a respeito dos lugares reservados às almas depois da morte, para as atormentar. Aquele que cuidou do nosso nascimento, colocando-nos, ao virmos ao mundo, em braços amantes, estendidos para nos receberem, reserva-nos também afeições para a nossa chegada ao Além. Expulsemos para longe de nós os terrores vãos, as visões infernais, as beatitudes ilusórias. O futuro, como o presente, é a atividade, o trabalho; é a conquista de novos postos. Tenhamos confiança na bondade de Deus, no amor que Ele tem às suas criaturas, e avancemos com firmeza no coração para o alvo que a todos Ele marcou!


Além da campa, o único juiz, o único algoz que temos é a nossa própria consciência. Livre dos estorvos terrestres, adquire ela um grau de acuidade para nós difícil de compreender. Adormecida muitas vezes durante a vida, acorda com a morte e a sua voz se eleva; evoca as recordações do passado, as quais, despidas inteiramente de ilusões, lhe aparecem sob a sua verdadeira luz, e as nossas menores faltas se tornam causa de incessantes pesares.


“Não há, como disse Myers, necessidade de purificação pelo fogo. O conhecimento de si mesmo é o único castigo e a única recompensa do homem.” (117)


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Existe em toda a parte a harmonia, tanto na marcha solene dos mundos, como na dos destinos. Cada um é classificado segundo as suas aptidões na ordem universal. Aos grandes Espíritos incumbem as altas tarefas, as criações do gênio; às almas fracas as obras medíocres, as missões inferiores. Em qualquer campo que se exerça a atividade de nossas vidas, tendemos para o lugar que nos convém e legitimamente nos pertence.


Façamo-nos, pois, almas poderosas, ricas de ciência e virtude, aptas para as obras grandiosas e elas por si mesmas hão de se colocar em nobre posição na ordem eterna.


Pela alta cultura moral, pela conquista da energia, da dignidade, da bondade, esforcemo-nos por alcançar o nível dos grandes Espíritos que trabalham pela causa das humanidades, para apreciarmos com eles as alegrias reservadas ao verdadeiro mérito. Então a morte, em vez de ser um espantalho, converter-se-á, para nós, em um benefício, e poderemos repetir as célebres palavras de Sócrates: – “Ah! se assim é, deixai que eu morra uma e muitas vezes!”